Caros sócios e Leitores da revista de artilharia,
Começamos e acabamos este Editorial pelo COViD-19, porque a Vida deve estar sempre em primeiro lugar.
Vivemos uma “guerra” contra uma pandemia global, que todos os documentos estratégicos, das organizações internacionais como a NATO, aos países como os EUA, relevam como ameaça e risco transnacional, sem que tenham planos de operações ou de contingência aprovados, trabalhados e testados devidamente. E esta pandemia não é a primeira, nem será a última, a marcar a Humanidade. no entanto, é a primeira da era da globalização com uma rapidez e amplitude que exige uma resposta concertada a nível global.
Sabemos que o conceito de guerra passa pela “mera continuação da política por outros meios” (clausewitz), ou pela “violência organizada entre grupos políticos, em que o recurso à luta armada constitui, pelo menos, uma possibilidade potencial, visando um determinado fim político, dirigida contra as fontes de poder do adversário e desenrolando-se segundo um jogo contínuo de probabilidades e azares” (Abel Cabral Couto).
Mas, como temos visto e lido, desde chefes de Estado e de Governo, ao Secretário-geral da ONU, passando pelo Papa Francisco, o termo “guerra” e outros conceitos da área das ciências militares, como “inimigo”, “batalha” ou “combate”, têm sido profusamente utilizados. A utilização destes termos, visa reforçar a dimensão do problema, que marca a agenda mundial, mas também motivar os cidadãos para “derrotar” o coronavírus. E marca politicamente, socialmente, economicamente, financeiramente, militarmente, psicologicamente, e noutras dimensões que ainda hoje não sabemos ou imaginamos. E marcará certamente os nossos livros de História para os vindouros.
Nesta “guerra”, o inimigo é invisível e omnipresente, representado por uma simpática “bola com coroas”, denominada coronavírus, de dimensões submicroscópicas, mas com uma elevada capacidade de contágio e de destruição sobre todos os seres humanos, em especial junto dos mais idosos e debilitados.
Nesta “guerra”, os principais atores não são as Forças Armadas, mas os sistemas nacionais de saúde dos diferentes países e, em primeira linha, os médicos e enfermeiros, que colocam diariamente em risco a própria vida e, indiretamente, a vida dos seus familiares e amigos.
Nesta “guerra”, todos somos combatentes e as Forças Armadas têm também um papel importante, ditado dia a dia pelo sentido de serviço em prol da comunidade, com missões tão diversas como a desinfestação, o apoio sanitário com os seus recursos específicos, desde hospitais a laboratórios, o apoio aos sem-abrigo, o fornecimento de material e equipamento, o apoio em regime de complementaridade e de excecionalidade às Forças e Serviços de Segurança ou o transporte de mortos nos cenários mais adversos (como em Itália).
Nesta “guerra”, os principais sistemas de armas são os ventiladores, enquadrados por unidades hospitalares e utilizados por pessoal de saúde altamente qualificado e com elevado sentido de missão e de serviço.
Nesta “guerra”, a estratégia principal é o “isolamento social”, que irá transformar o nosso Mundo, em termos sociais, políticos, económicos e tecnológicos. E este isolamento não acontece na retaguarda, pois o vírus tem o condão de esbater o conceito de linha da frente e de retaguarda do “campo de batalha”.
Nesta “guerra”, os combates são diários e pessoais, mas também invisíveis e coletivos, na certeza de que os mais idosos e debilitados correm mais riscos e precisam de mais apoio.
Nesta “guerra”, o número de infetados e de mortos aumenta diariamente, num crescendo ditado em múltiplos “teatros de operações”, com os mais complexos (até agora) a situarem-se na China, em Itália ou em Espanha.
Nesta “guerra”, tal como noutras, em especial nas duas guerras mundiais do século XX, existe uma generosidade sem limites que é acompanhada por um sentimento omnipresente de terror, em especial para aqueles que lutam diariamente nos hospitais para salvar vidas.
Nesta “guerra”, os decisores continuam a ser os políticos, mas agora auxiliados por peritos, epidemiologistas, infeciologistas, especialistas em saúde pública, médicos e outros operacionais.
Nesta “guerra”, os investigadores, talvez mais do que no passado, têm e continuarão a ter um papel determinante para que o controlo e a derrota total do “inimigo” sejam rápidos e definitivos.
Nesta “guerra”, não há vencedores nem vencidos, só há heróis que cuidaram dos mais velhos e dos mais novos, contribuindo diretamente para a construção de um futuro melhor, sustentado na solidariedade entre pessoas e povos e em torno do valor da Vida.
Termino, salientando que a trindade da guerra de Carl Von Clausewitz, descrita no seu “Da Guerra” (1832), é composta pela “violência original dos seus elementos”, pelo “jogo das probabilidades e azar” e pela “natureza subordinada a um instrumento político”, juntando o Povo, o Exército e o Governo, naquilo que define como uma atração fatal. E nesta “guerra” contra o COVID-19, o Povo, o Exército (neste caso alargado a todos os combatentes) e o Governo, continuam a ser determinantes, mas agora em prol de um bem comum, a Vida.
Mas as guerras continuam na Síria, no Afeganistão, na República Centro Africana, no Mali, na República Democrática do Congo, na Nigéria, na Líbia, no Sudão do Sul, no Iémen e na Ucrânia, entre outros teatros de operações, e onde centenas de militares portugueses continuam a lutar pela Paz, mas sempre em prol de um bem comum, a Vida.
Lisboa, 30 de março de 2020.
O Presidente da Comissão Executiva da Revista de Artilharia
João Jorge Botelho Vieira Borges
Major-general